17.11.08

Manejo peri-operatório de pacientes usuários de anticoagulantes orais

                                                                                                        Renata Lopes Diaz Rocha

INTRODUÇÃO

Os anticoagulantes orais (cumarínicos) são drogas antagonistas da vitamina K que impedem a carboxilação dos fatores II, VII, IX e X (dependentes da vitamina K), sendo freqüentemente prescritas em todo mundo devido a sua ação efetiva na profilaxia dos fenômenos tromboembólicos. Assim, pacientes portadores de fibrilação atrial crônica, prótese valvar mecânica, estenose carotídea, doença coronariana, síndrome do anticorpo antifosfolípide ou, que apresentam antecedentes de trombose venosa profunda, tromboembolismo pulmonar e acidente vascular cerebral isquêmico, comumente fazem uso de tais fármacos pelo elevado risco de fenômenos tromboembólicos que apresentam.

Devido à elevada prevalência das doenças cardiovasculares e ao envelhecimento da população, o número de usuários de varfarina (cumarínico mais prescrito) vem crescendo (estima-se que na América do Norte 1 milhão de pessoas façam uso cronicamente 1), e ocasionalmente pacientes anticoagulados cronicamente necessitam de procedimentos cirúrgicos, visto que a maior parte são indivíduos com mais de 65 anos, representando uma população com duas vezes mais chance de requerer algum procedimento cirúrgico 1. Dessa forma, esses pacientes exigem um manejo peri-operatório de acordo com o risco de tromboembolismo do paciente e com o risco de sangramento inerente à operação, com o objetivo de evitar grandes hemorragias no trans e pós-operatórios, sem aumentar o risco de fenômenos tromboembólicos.

Vê–se comumente diferentes estratégias no manejo desses pacientes, como a simples parada na administração do anticoagulante oral, em pacientes com menor risco de tromboembolismo, ou a introdução de esquema anticoagulante com heparina não fracionada ou heparina de baixo peso molecular no lugar do cumarínico 2. No entanto, existem poucos estudos prospectivos a longo prazo que definam quando e como os cumarínicos devem ser suspensos e re-introduzidos e quando e como o esquema com heparina não fracionada ou heparina de baixo peso molecular deve ser realizado, dificultando a definição de um manejo para uso prático 1.

 

Avaliação do risco de tromboembolismo

Para avaliar o risco de tromboembolismo do paciente se suspensa a terapia anticoagulante oral deve-se em primeiro lugar considerar a indicação da terapia anticoagulante e então estratificar os pacientes em alto, moderado e baixo risco de acordo com as fatores que agravam o risco em cada uma das indicações, com o intervalo de tempo desde a ocorrência de um evento tromboembólico e com as comorbidades.

 

Fibrilação atrial

O risco anual de tromboembolismo em pacientes com fibrilação atrial, sem uso de medicação anticoagulante é de 4,5% 3. A presença de disfunção ventricular, disfunção valvar, cardiopatia isquêmica, hipertensão, diabetes, idade avançada e a história de evento tromboembólico, principalmente se ocorrido há menos de 30 dias, aumenta em diferentes níveis o risco de tromboembolismo. Os pacientes com fibrilação atrial podem ser então divididos nos dois grupos de acordo com os fatores 1,3:

 

Alto risco:

• Evento tromboembólico há menos de 30 dias

• Doença da válvula mitral

 

Moderado risco:

• Mais de 75 anos de idade

• História de tromboembolismo

• Cardiopatia isquêmica

• Disfunção ventricular esquerda

• Dilatação do átrio esquerdo

• Hipertensão

• Diabetes

 

Válvulas cardíacas mecânicas

Pacientes portadores de válvulas cardíacas mecânicas têm um risco de tromboembolismo arterial de 8% ao ano sem tromboprofilaxia, sendo esse risco reduzido para menos de 2% com a anticoagulação 3. Tais pacientes são apenas divididos em alto risco e médio risco, não se considerando de baixo risco nenhum portador de válvula mecânica. Foi observado que as próteses mitrais, a válvula de Starr-Edwards, de Bjork-Shiley e as válvulas de um só folheto são as mais trombogênicas, as primeiras devido à grande estase vascular na região 1,4. Assim como na fibrilação atrial, são considerados todos os fatores que podem aumentar o risco de tromboembolismo 1,3:

 

Alto risco 3:

• Evento tromboembólico prévio

• Troca valvar recente (menos de 90 dias)

• Mais de uma prótese

• Prótese mitral

• Prótese de um só folheto

• Trombo mural

• Fibrilação atrial

• Disfunção do ventrículo esquerdo

• Gravidez

 

Risco moderado 3:

• Prótese de dois folhetos

• Biopróteses colocadas há mais de 90 dias

 

Trombose venosa profunda e tromboembolismo pulmonar

Existem poucos dados estatísticos sobre o risco de recorrência no caso de suspensão do warfarin 1, no entanto sabe-se que há relação com a etiologia da doença, sendo nos casos idiopáticos maior a chance de recorrência (10-27% ao ano), e com o período desde a ocorrência do evento (menor de 30 dias) sendo de 40% ao ano o risco de recorrência 3.

Cirurgias de grande porte aumentarão o risco independente de outros fatores devido à imobilização que requerem, por esse motivo, se eletivas, devem ser postergadas até que tenham sido realizados três meses de tratamento anticoagulante, pois nesse caso o risco de recorrência decresce para 5% 3.

Alto risco 3:

• Evento tromboembólico há menos de 30 dias

 

Moderado risco 3:

• Evento tromboembólico há menos de 3 meses

• Obesidade

• Neoplasia maligna

• Imobilidade pós-operatória

 

Baixo risco 3:

• Evento tromboembólico há mais de 3 meses, sem outros fatores de risco

• Presença de outros fatores de risco, sem história de tromboembolismo

 

Avaliação do risco de sangramento

Estratificados os pacientes em alto, moderado e baixo risco de tromboembolismo em caso de suspensão da terapia com warfarin, será então realizada a categorização dos procedimentos quanto ao risco de sangramento anormal na vigência de anticoagulação, com o objetivo de prevenir perda intra-operatória exagerada, hematomas e conseqüentemente infecções, instabilidade hemodinâmica, além de outras complicações dependendo da extensão e local do sangramento 3.

Existem procedimentos que apesar de uma adequada técnica cirúrgica, estão freqüentemente associados à sangramento pós-operatório considerável. São exemplos a cirurgia de revascularização miocárdica, procedimentos urológicos, particularmente devido à presença da enzima uroquinase no epitélio desses órgãos. A biópsia renal percutânea é considerada um procedimento de alto risco pois no eventual sangramento, este é silencioso, dificultando a detecção. Pacientes diabéticos ou em uso de corticosteróides podem elevar o risco de sangramento pós-operatório anormal nas cirurgias de ressecções intestinais, pois apresentam maior dificuldade na cicatrização das anastomoses. As neurocirurgias são consideradas de alto risco devido às graves conseqüências da hemorragia no sítio cirúrgico.

 

Procedimentos de alto risco 1:

• Neurocirurgias

• Prostatectomia, cirurgias vesicais

• Troca de válvula cardíaca, revascularização miocárdica e cirurgias vasculares de grande porte

• Polipectomia intestinal

• Biópsia renal

• Excisão de grandes tumores

 

Procedimentos de médio risco 1:

• Cirurgias intrabdominal de grande porte

• Cirurgias intratorácica de grande porte

• Cirurgias ortopédicas de grande porte

• Inserção de marcapasso cardíaco

 

Procedimentos de baixo risco 1:

• Herniorrafias

• Colecistectomia laparoscópica

• Biópsia prostática 5

• Extrações dentárias não complicadas 5

• Cirurgia para catarata

• Procedimentos dermatológicos

• Cateterismo cardíaco

• Esofagogastroduodenoscopia e colonoscopia com biópsia

• Artrocentese, paracentese, toracocentese

 

Conduta no pré-operatório

Inicialmente, definiremos se a terapia com o warfarin deverá realmente ser suspensa, mantida ou ter suas dosagens reduzidas. Por exemplo, pacientes que serão submetidos a procedimentos com baixo risco de sangramento, não necessitam da suspensão do medicamento 3. Essa medida tem importância pois estudos demonstram que a freqüente suspensão da terapia anticoagulante para a realização de procedimentos odontológicos está associada a ocorrência de fenômenos tromboembólicos sendo o risco 4 vezes maior que o de ocorrência de hemorragia. Além disso, foi provado que endoscopias digestivas com ou sem biópsia, operação de catarata, artrocentese e extrações dentárias não estão relacionadas a hemorragias graves mesmo na vigência de anticoagulação oral. Assim, procedimentos em que a continuidade da terapia cause sangramentos controláveis apenas com medidas locais não requerem parada da administração dos anticoagulantes orais 5.

Salientamos a importância da monitoração do tempo de protrombina (TP) e do INR (international normalizaded ratio) na avaliação pré-operatória, pois os pacientes que serão submetidos à procedimentos de baixo risco, devem encontrar-se dentro da faixa terapêutica que em geral é de 2,0 a 3,0 (ou 4,0 dependendo da indicação) para o INR e de 2 a 2,5 vezes o controle para o TP. Entretanto, procedimentos com maior risco de sangramento, requerem valores de TP/INR dentro ou próximos aos normais 5. Dessa forma, além do controle periódico rigoroso, deve ser obtido TP/INR no dia em que o warfarin for suspenso (se for esse o caso) e no dia da operação, pois os cumarínicos demoram a ter seu efeito revertido.

Confirmada a necessidade de suspensão do anticoagulante oral, esta deve ser iniciada 5 dias antes do procedimento, o que permitirá que o INR chegue a 1,5 no dia da operação, e o paciente deve ser orientado a parar o uso de anti-agregantes plaquetários 7 dias antes 1. Avaliaremos então, a necessidade de introdução de terapia anticoagulante alternativa com heparina não fracionada ou heparina de baixo peso molecular.

Alguns autores acreditam que o risco de tromboembolismo é superestimado, e pacientes de baixo risco para eventos tromboembólicos não necessitam da terapia alternativa 5. Entretanto, deve-se levar em consideração o estado de hipercoagulabilidade causado pela própria operação (causando aumento dos níveis de plasminogênio) e pelo aumento rebote da trombina após cessar o efeito anticoagulante 7.

Estabeleceu-se então que pacientes com alto risco para eventos tromboembólicos têm fortemente recomendada a tromboprofilaxia e em casos com moderado risco esta deve ser considerada, avaliando-se o probabilidade de sangramento inerente ao procedimento. Em pacientes de baixo risco, a terapia é opcional (Tabela 1).

 

Tromboprofilaxia com heparina de baixo peso molecular

A heparina de baixo peso molecular (HBPM), apresenta vantagens em relação às HNF por ser segura, tendo uma dose fixa calculada através do peso, apresentando níveis séricos previsíveis após a injeção subcutânea, pouca ligação à proteínas plasmáticas, não exigindo monitoração laboratorial, pois atua inibindo o fator X porém com menor inibição da trombina e por permitir o uso no domicílio.

Deve-se iniciar a tromboprofilaxia quando o INR encontrar-se abaixo da faixa terapêutica, ou seja se a faixa terapêutica for de 2,0 a 3,0 inicia-se a HBPM quando o INR for menor que 2,0. Como essa abordagem requer obtenções diárias do INR, empiricamente, inicia-se a HBPM após 1 ou 2 dias sem o uso da warfarina. A HBPM pode ser administrada 1 ou 2 vezes ao dia, a última dose deve ser administrada 12 a 24 horas antes da cirurgia e a re-introdução 24 a 72 horas depois dependendo do risco de sangramento 1,3.

 

Tromboprofilaxia com heparina não fracionada

A tromboprofilaxia com heparina não fracionada (HNF) requer internação 3 a 4 dias antes e 3 a 4 dias depois do procedimento, devida a variabilidade de respostas à terapia, exigindo portanto ajustes freqüentes de acordo com os valores de TTPA (tempo de tromboplastina parcial ativada). O seu uso está indicado em pacientes com elevado risco de tromboembolismo e elevado risco de sangramento cirúrgico ou em pacientes que tenham apresentado evento tromboembólico a menos de 30 dias. A HNF tem a vantagem de ter seu efeito facilmente revertido pelo o sulfato de protamina ao contrário da heparina de baixo peso molecular que é revertida apenas em 60%. A HNF deve ser suspensa 4 horas antes do procedimento e re-introduzida 12 a 24 horas depois 1,3.

 

Abordagem da tromboprofilaxia

A forma de tromboprofilaxia será então determinada de acordo com os fatores de risco. Em todos os casos o warfarin é suspenso 5 dias antes do procedimento e a tromboprofilaxia iniciada 4 dias antes. É obtido no dia anterior o valor do INR, e se este for maior que 1,5 poderá ser administrada uma pequena dose de vitamina K e a medida deverá ser repetida na manhã da operação. Se caso o INR ainda encontrar-se maior que 1,5, o cirurgião poderá optar por modificar a técnica cirúrgica, corrigir o INR com plasma fresco congelado, postergar a cirurgia, ou até mesmo assumir o risco junto com o paciente de realizar a operação nessa condição 3.

Evento tromboembólico há menos de 30 dias: se possível deve-se postergar o procedimento, do contrário o warfarin é suspenso e o paciente internado 4 dias antes para início da tromboprofilaxia intravenosa com heparina, sendo esta suspensa 4 horas antes e reiniciada 12 a 24 horas depois da operação 1.

Presença de outros fatores de alto risco para eventos tromboembólicos: enoxeparina na dose de 1 a 1,5mg/kg/dia, dependendo do número de fatores de risco, havendo intervalo de 24 horas entre a última dose e o procedimento cirúrgico 1.

Pacientes com moderado risco de eventos tromboembólicos: enoxeparina a 40mg/dia, com um intervalo de 12 horas entre a última dose e a operação 1.

Pacientes com baixo risco de eventos tromboembólicos: enoxeparina 20mg/dia, com 12 horas de intervalo entre a última dose e o procedimento 1.

A tromboprofilaxia pode ser recomeçada, na mesma dosagem, de 12 a 48 horas após o procedimento cirúrgico até que o INR encontre-se dentro da faixa terapêutica, e a warfarina seja re-introduzida 1,3 (Tabela 2).

 

Pacientes que apresentam hemorragia no pós-operatório

A conduta na ocorrência de sangramento anormal no pós-operatório dependerá da causa, do volume e do sítio da hemorragia, sendo em geral a tromboprofilaxia suspensa. Entretanto, realizado adequado controle, esta poderá ser re-iniciada 24 horas depois. Situações como hemorragias intracranianas e intestinais, no entanto, requerem maior tempo de suspensão, as primeiras devem ser acompanhadas radiológicamente para que se avalie a possibilidade de re-introdução.

 

Re-introdução do anticoagulante oral

A re-introdução do cumarínico pode ser realizada na noite após o procedimento pois o efeito anticoagulante mínimo da warfarina é obtido somente 24 horas depois da dose inicial e o efeito terapêutico dá-se com 4 a 5 dias de uso da medicação.

 

Conclusões

A definição de uma abordagem peri-operatória dos pacientes em uso de anticoagulantes orais tem importância pois a má condução desses casos pode culminar com sangramentos pós-operatórios fatais ou fenômenos tromboembólicos catastróficos.

Ressaltamos a importância da avaliação da necessidade de interrupção do uso do cumarínico e, da introdução da tromboprofilaxia com heparina, sendo esta última de grande utilidade pois permite anticoagulação peri-operatória sem que haja no momento do procedimento as alterações de difícil reversão no TP/INR causadas pelos cumarínicos. Nesse contexto, destaca-se a heparina de baixo peso molecular por não necessitar de controle laboratorial rigoroso permitindo seu uso em ambiente extra-hospitalar.

Como foi exposto, procedimentos com baixo risco de sangramento não exigem interrupção da warfarina, desde que o INR encontre–se dentro da faixa terapêutica. Em procedimentos de moderado e alto risco espera-se um valor de INR menor que 1,5 para execução do procedimento com segurança.

Portanto, sendo adequadamente avaliados os riscos, havendo rigorosa monitoração do TP/INR e TTPA (se estiver sendo utilizada heparina não fracionada) e utilizando-se corretamente os esquemas anticoagulantes com heparina, minimizaremos as potenciais complicações pós-operatórias desses pacientes.

Tabela 1: Conduta no pré-operatório de pacientes usuários de anticoagulantes orais, de acordo com o risco cirúrgico de sangramento e o risco de tromboembolismo do paciente

 

REFERÊNCIAS

1- Douketis J.D. Perioperative management in patients who are receiving oral anticoagulant therapy: a practical guide for clinicians. Thrombosis research. 2003; v. 180: p. 3-13.

2- Dunn A.S., Turpie G.G.A. Perioperative management of patients receiving oral anticoagulants. Arch intern med. 2003; v. 163: p. 4-28.

3- Watts S. A., Gibbs N.M. Outpatient management of the chronically anticoagulated patient for elective surgery. Anaesthesia and intensive care. 2003; v. 31: p. 145-154.

4- Alexander R., Ferreti A.C., Sorensen J.R. Stop the nonsense not the anticoagulants: a matter of life and death. Editorial, NYSDJ. 2002.

5- Marietta M., Bertesi M., Simoni L., Pozzi S., Castelli I., Cappi C. A simple and safe nomogram for the management of oral anticoagulation prior to minor surgery. Clin. Lab. Haem. 2003; v. 25: p. 127-130.

6- Shapira Y., Vaturi M., Sagie A. Anticoagulant management of patients with mechanical prosthetic valves undergoin non-cardiac surgery: indications and unresolved issues. Heart valve dis. 2001; v. 10: p. 380-387.

7- Genewein U., Haeberli A, Straub P.W., et al. Rebound after cessation of oral anticoagulant therapy: the biochemical evidence. Br. J. Hematology. 1996 ; v. 92: p. 479-485.

8- Lourenço M.D., Lopes L.H.C., Vignal, Morelli V.M. Avaliação clínica e laboratorial de pacientes em uso de anticoagulantes orais Arq Bras Cardiologia. 1997;v. 68: p. 353-356.

9- Goodman, L.S. et al. Goodman e Gilman: Bases farmacológicas da terapêutica. Trad: Vorsatz, 10° ed. Rio de Janeiro: Mc Graw Hill. 2003; cap 55: p. 1146-1150. 

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